Eis que, enquanto refletia sobre a importância da História, descubro esse poema sensacional. Tive a mente iluminada de súbito ao lê-lo. Foi como se todas as pontas soltas fossem amarradas e, quase que por mágica, tudo fizesse sentido onde antes era um caos de ideias. A poesia tem esse efeito em nós: organiza o que está tumultuado dentro de nosso ser, dando forma onde antes era matéria bruta.
Tudo aconteceu para que você nascesse
E para a sua vida quantas vidas
foram necessárias… Pense nos quartos, nas festas,
nas guerras, nas cidades,
tudo que é secretamente seu ontem,
a confabulação milenar que fez
que você fosse.
O seu pai – Teruel, Brunete, o Ebro… –
lendo nessas trincheiras
hexâmetros desfeitos pelo fogo
de morteiro, também seu avô nas difíceis
alturas de Cerdedo ou Pedamúa
com um embornal convulso de perdizes,
teu bisavô em um entardecer
melodioso em Cuba, olhando o mar do Caribe,
vendo, porém, a doce Catalunha,
“Ferro Velho” [apelido do tataravô do poeta] pousando prum daguerreótipo
com leontina e cartola e puro e guarda-chuva,
e os Peix, os Vidal, os Estévez, os Orge,
os Pérez, os Rovira…, todos, com seus ofícios,
suas barbas, mulheres,
seus males, dissipando-se no tempo,
nesse fosso comum do esquecimento…
E avança,
mas penetre na névoa desse séculos,
suponha ser um peregrino
adivinhando Astorga, além, na madrugada,
imagine um mouro ferido, vendo a fuga
da poeira feroz do seu exército,
olhe um homem que estira, em uma rocha,
o couro fedorento de uma loba,
veja os centuriões resplandecentes
em torno da fogueira, e Aníbal e Cartago,
e a mulher sangrando, que arqueja
parindo sobre um feixe de feno, e o hirsuto
pintor de renas e bisões que por machados
médios troca uma fêmea… e tudo aquilo que teve
que acontecer pra que você nascesse
desde que aquelas Mãos amassaram
o barro primitivo. Modelado
também para que dele, esta manhã,
brotasse este poema.
Miguel D'Ors
(Tradução de João Filho)
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